O CEGO
O que teria sido pior, nascer cego ou
perder a visão depois de enxergar? Essa era uma pergunta recorrente nos últimos
tempos, quando os dias e noites se tornaram iguais e intermináveis.
Não houve preparo para a tragédia,
nem há maneira de se preparar para ela, ainda que tivesse sido anunciada com
muita antecedência.
Comera e bebera como um glutão o
final de semana inteiro, arrumara várias brigas na casa da sogra, com a
própria, com os cunhados e até com os vizinhos, por tudo e por nada, apenas
para não perder o costume e a fama de chato. Dormira com uma dor de cabeça
alucinante e acordara coçando freneticamente os olhos.
Esfregara-os mais um pouco para que
aquelas nuvens espessas e escuras se dissipassem, atribuindo-as à ressaca da
véspera. Nada, quanto mais coçava, mais turva ficava a pouca visão que tinha.
Desespero.
Emergência.
Laser.
Cirurgia.
Nada.
Suas retinas se romperam, descolaram
e apagaram a luz do mundo para ele.
Blá, blá, blá de médicos, esperança
pouca, vontade de morrer.
Promessas vãs, consolos inúteis,
resignação nenhuma.
De repente, perdera o medo da morte
que tanto o angustiara.
Um rancor estranho tomou conta de
seus dias, alternando-se entre apatia, indiferença e, sobretudo, muita
insegurança.
De um dia para o outro precisara reaprender
a andar, comer, tomar banho, se vestir, além do pior de tudo, que era depender
de alguém para as coisas mais básicas e ainda ficar ouvindo a família da mulher
dizer que ele estava sendo um fardo muito pesado para ela, coitada!
Teimosamente, recusava-se a usar os
demais sentidos para compensar a visão. Não queria ouvir música, nem falar ao
telefone, tampouco gostava que lessem os jornais para ele e não queria viver
apalpando a si e aos outros, porque as mãos não tinham sido feitas para ver!
Seus amigos de bebedeiras, futebol,
orgias, sumiram todos! Diziam não suportar a ideia de vê-lo cego, eram fracos,
iriam chorar. Sendo assim, só os chatos o procuravam, com aquelas frases de
nenhum efeito, rezas, exemplos de gente ainda mais infeliz que ele e coisa e
tal.
Quando se imaginava sozinho (como
sabê-lo?), apalpava seus cabelos já compridos, a barba mal feita pela mulher,
os sapatos que não reconhecia, as unhas de formato estranho, os dentes, os
malditos olhos apagados. E crescia o desespero. Pedia um calmante aos gritos,
queria dormir, quem sabe acordava daquele pesadelo?
Logo ele, que sempre fizera questão
absoluta de privacidade, que se criara cheio de pudores e até para vestir uma
sunga ficava desconfiado. Agora era devassado completamente, desnudado,
inspecionado e sua higiene íntima transformara-se em coletiva, sempre com
alguém diferente querendo ajudar sua pobre mulher a carregar fardo tão pesado.
Até para eliminar gases, uma praga para quem permanece muito tempo na mesma
posição, eram necessárias várias tentativas de certificação de privacidade,
impossível de serem comprovadas.
Pior de tudo era não poder mais ver
as “gostosas” na praia e na rua! Sempre fora um olheiro voraz e sentia uma
falta imensa de encher os olhos com aqueles peitos e bundas fartas, aqueles
olhos brejeiros, a curva da cintura, o torneado das pernas. Haja imaginação!
Pelos anos de paquera ele conhecia a
voz da mulher bonita, da mulher gostosa, da fácil e da difícil e, por um
reflexo adquirido, não deixava de virar o rosto na direção da voz que lhe
trouxesse alguma expectativa, mesmo que agora já não pudesse comprovar sua
suspeita.
De repente, descobriu-se com ciúme da
sua mulher. Como poderia perceber os olhares que os homens lhe dirigiam e
confirmar se ela correspondia?
Não conseguiria viver assim.
E foi murchando. Falava pouco,
submetia-se às determinações de seus médicos e cuidadores e já não ficava tão
constrangido quando precisava ir ao banheiro sem trancar a porta.
Seu corpo fora desnudado, analisado,
criticado, manipulado, mas sua alma estava preservada. Nela, ninguém iria
tocar, tampouco descobrir o que lhe ia na mente. Ao contrário de cárcere da
alma, agora seu corpo nem lhe pertencia mais, servia apenas para despertar
piedade nos outros, ou para que eles se sentissem melhor, mais nobres, mais
caridosos por ajudarem-no nas tarefas do dia a dia.
Agora, sua alma estava cada vez mais
intocada, mais protegida e menos vulnerável à execração humana.
Só seu corpo tinha ficado cego. Em
contrapartida, seu espírito viajava, livre e solto, muito além de todas aquelas
pequenezes da vida.
E isso só ele sabia.
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