Ela andava
evitando o espelho já há algum tempo. Nesse dia, tomou coragem e se postou
diante do maior da casa, aquele que vinha acompanhando sua família há muitas
gerações. Lentamente, aproximou o rosto até enxergar as linhas maiores que o tempo
e os problemas tinham desenhado nele. Não gostou nada do que viu. Sentiu pena
daquela mulher triste que a encarava. Continuou a análise pelos cabelos, sempre
com teimosas raízes brancas e tão pouco brilho. Pareceu-lhe que sua vasta e
indomável cabeleira diminuíra consideravelmente e já não dispunha do frescor da
juventude para contrabalançar os fios rebeldes. Afastou-se um pouco e examinou
as roupas largas e surradas, usadas em tantos invernos. Triste figura. Como não
percebera antes que já era velha?!
Velha. Ve-lha!
Se alguém lhe chamasse assim morreria na hora, no entanto, era isso mesmo que
era. Uma mulher velha.
Passava o tempo
todo se revestindo de desculpas para não se cuidar e os anos se apoderaram da
pouca beleza que tinha, sem que ela percebesse. Dessa vez, nem fora preciso
colocar os óculos de grau para que a realidade desabasse sobre ela. Velha e
feia. Mal cuidada, gorda, desajeitada.
Nos últimos
anos vivera pelos outros, cuidara da família inteira, cozinhara banquetes,
recebera pouco reconhecimento e alguns elogios. Agora se dava conta de que os
elogios já não eram para a sua pessoa e sim para seus pratos, sua dedicação,
suas habilidades.
Como levara
tanto tempo para se dar conta de sua derrocada como mulher? Desde o momento em que
começara a evitar as fotos, já era um prenúncio da decadência que hoje lhe fora
revelada.
Ele tinha sido
seu grande amor! O mais bonito, o mais bem sucedido, o mais isso e aquilo, o
perfeito! Conhecera-o adolescente e tivera com ele uma relação forte e fugaz
por mais de quarenta anos. Nunca fora “oficialmente” nada para ele, mas jamais
se perderam de vista e o amor permanecia lá, “num estojo de veludo”, como ele
lhe dissera tantas vezes. Dele ouvira os elogios mais doces e recebera os
maiores carinhos. Nos momentos de maior intimidade, ele afirmava que o amor só
duraria para sempre se continuasse livre da rotina sufocante do casamento e foi
desse jeito que se mantiveram unidos, mesmo de longe, sofrendo a ação do tempo
e da distância, no entanto sem cair no esquecimento. Ainda segundo ele, a
rotina, as coisas que ocupavam o dia-a-dia dos mortais comuns não deveriam
influir naquele amor primordial.
Ela aprendera
com o neto a usar o computador e a encontrar amigos e amores no mundo virtual e
nas redes sociais. Logo descobriu o perfil de seu grande amor numa dessas redes
e sempre visitava página dele, austera, discreta, com pouquíssimas fotos e
referências pessoais. Do jeito dele mesmo.
Nessa tarde,
sentou-se para ver as fotos do casamento do filho de uma colega de trabalho, no
estilo hippie, tão diferente dos seus filhos, que casaram com pompa,
circunstância e rios de dinheiro desperdiçado, uma vez que mal acabava a
lua-de-mel e o sorriso deles já se tinha apagado, talvez para sempre.
Seguindo a rede
e as festas, desembocou numa foto que mudou completamente o curso da sua
vidinha medíocre. Lá estava ele, ao lado de uma bela mulher mais jovem, com
carrões, sorrisos, lugares românticos, declarações de felicidade. Procurou mil
defeitos na tal fulana e só conseguiu comprovar sua elegância e beleza. Era o
fim. Não que ele nunca tivesse tido outras mulheres, mas eram todas inferiores a
ela, mais velhas, mais gordas, mais ranzinzas. Agora não. Dessa vez ela fora
covardemente substituída por alguém muito melhor e isso era desesperador. Além
disso, a moça loira, de olhos claros e longos cabelos portava um cigarro entre
os dedos, que certamente lhe ajudava a manter a elegância. Ele também fumava,
portanto, o cheiro não devia lhe incomodar. Pior para ela, que engordara vinte
quilos ao parar de fumar e isso anulava a vantagem do seu perfume, com certeza!
O sentimento
que a invadiu instantaneamente foi de luto. Uma palavra não lhe saía da cabeça:
“amada”. A mulher não dizia às amigas só que o amava, mas que estava sendo
“amada” como nunca!
Acabara de perder a tramontana e sua cabeça
girava como um peão, sem saber o que fazer, o que planejar, o que esperar da
vida. Foi quando decidiu ter um encontro sem disfarces com o espelho e suas
últimas esperanças caíram por terra.
A foto da
mulher sorridente e enlevada, fotografada pelo homem a quem amara durante toda
a vida não lhe saía da cabeça. Encheu um copo de uísque, cowboy como ele
apreciava, e dessa vez nem fez caretas, pois não sentia o sabor. O álcool
aqueceu o sangue e permitiu às lágrimas aflorarem aos olhos, geladas, contidas,
antecipando a vingança que certamente iria acontecer.
Trair o marido,
ou a esposa não é nada diante da traição primordial e visceral do amor. Não se
pode trair o amor! É a negação, em sua forma mais ampla, da humanidade do
homem. Ele existe, é gente, porque ama. E esse sentimento não deve ser
atraiçoado!
Mesmo sem ter
havido um acordo, ela nunca o procurara: era sempre ele quem tomava a
iniciativa, ainda que se passassem anos, como agora.
Só que, desta
vez, ela queria ver com seus próprios olhos, constatar “in loco” aquela efusiva
felicidade alardeada pela outra nas redes sociais.
E foi.
Há tempos não
pegava a estrada sozinha, entretanto, este não era um assunto para se levar
acompanhantes.
Chegou à
noitinha, a tempo de vê-lo sair, lindo e bem vestido como sempre, acompanhado
da loira saltitante das fotos.
“- Parece que
as rivais das morenas são sempre loiras!”, pensou consigo mesma.
Seguiu-os e
esperou pacientemente que jantassem, dançassem e resolvessem ir embora. Não sabe
quanto tempo se passou. Seu coração estava sossegado demais. O sangue fluía
lentamente nas veias e as mãos descansavam firmes no volante.
Chegara a hora.
Enquanto ele
esperava o manobrista ela desceu, pegou a bolsa e até colocou o alarme no
próprio carro.
Seus passos
firmes dirigiam-se ao casal na beira da calçada, quando ouviu o ronco potente
do motor, a freada, os gritos e... lá estava seu grande amor estendido no
asfalto.
Correu.
Nem sabe como
conseguiu, mas correu.
Jogou-se
pesadamente no chão ao seu lado e segurou suas mãos frias. Nem por um instante
temeu não ser reconhecida, apesar dos mais de dez anos de mudanças físicas para
pior.
Ele dirigiu a
ela um olhar vidrado, tentou esboçar um meio sorriso e sussurrou:
- Lua...
A loira
indignou-se:
- Então é esta
a “lua” que você finge procurar no céu, como um astronauta? Ou que invoca
tantas vezes durante o sono? É esta?!
As mãos
firmemente entrelaçadas aproximavam as almas, que já se preparavam para sair em
outras viagens.
Ela, lívida,
ainda teve tempo de murmurar:
- E ele... ele
é o meu Sol!
2 comentários:
também tenho um poesia que se chama: a imagem no espelho. belo texto o seu,bem cuidado, simples e levando a reflexão sutil,sem pressa....
veja meu blog :katiachiappini-rememberthis.blogspot.com.br
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