Comecei a estudar piano com oito anos, no Conservatório do Maestro
Schneider. Apesar da pouca idade, ia sozinha para as aulas e ainda estudava num
piano alugado do Colégio das Freiras. O tempo passava rápido demais e elas tinham
que me avisar quando outro aluno chegava, tal o meu envolvimento já naquela época.
O Maestro falava entusiasmado da minha aptidão para o instrumento, mas todos
apostavam que eu iria enjoar.
Minha avó materna tinha sido uma excelente pianista, que
tocava em dueto com o irmão flautista, só que, com a morte do marido, ela se
desgostou da música e vendeu seu lindo piano alemão, uma vez que minha mãe até tentara,
mas descobrira que não dava mesmo para a música.
Com nove anos mudei de escola de música e fui estudar com a
professora Cyra Neves Brittes, que morava mais perto da minha casa e me cedia
seu piano para estudar. Ela convenceu meus pais de que valia a pena investir
num instrumento para mim, porque eu realmente gostava muito e tinha facilidade
para aprender.
Difícil explicar o que sente uma criança de nove anos diante
de um piano imponente, novinho em folha, numa loja comprida como o Posto Sayon,
onde teve que dedilhar o teclado branquinho para ouvir o som e encorajar o pai,
disposto a fazer um sacrifício enorme, como funcionário público que era, para
adquirir um instrumento caro daqueles para uma menina tão pequena.
O piano era um M.
Scwartzmann, depois fiquei sabendo que dos melhores da marca. Não era um piano
alemão, ou inglês, muito caros, sempre de segunda mão, mas era o melhor que meu
pai podia comprar e eu tinha um orgulho enorme dele!
Passei diante do meu piano horas saborosas, de descobertas,
de estudos, de encantamento, de envolvimento. Estudava com gosto, horas a fio e
nunca me negava a tocar para as visitas, ou para a família. Tocava em audições,
fazendo trilha sonora para desfiles, em festas, nos hotéis onde me hospedava
(até hoje faço isso) e até para os amigos dançarem, nas reuniões dançantes da
época.
Fui até o sétimo ano, já em Uruguaiana, com a professora
Rosalina Pandolfo Lisboa, que me deixou muito afiada, exigindo bastante de mim.
Com ela descobri e me apaixonei para sempre por Chopin.
Meu piano foi meu confidente, meu desabafo, minha saudade,
minhas paixões. Tudo vertido ali, naquelas telas imaculadas.
Depois vieram as mudanças, a angústia de vê-lo mal carregado
nos caminhões, a afinação caindo de tanta movimentação, mas nunca desisti de tê-lo
comigo.
Nele ensinei muitos alunos numa certa época da vida.
Nele também dois dos meus filhos estudaram, sendo que o
menor foi bem além, quase até onde eu parei.
Ultimamente tenho tocado pouco, a função das crianças não é
muito propícia para o piano. Como a Bruna tem manifestado vontade de aprender a
tocar, achei que chegara a hora de colocar meu amigão em dia, pois o móvel está
judiado das mudanças e aqui, nesta cidade, existe uma praga chamada cupim, que
destrói tudo o que a gente mais gosta.
Pois bem, serviços contratados,
afinador a postos e eis que recebo uma notícia muito triste, que me deixou realmente
abalada. Os malditos cupins comeram partes importantes da mecânica do piano e
fizeram a festa nas madeiras internas, onde a gente não pode vê-los. O
resultado disso é que meu piano está condenado! Vai continuar sendo afinado
enquanto segurar a afinação, mas o móvel está perdido.
Durou cinquenta e dois anos. É pouco. Poderia durar muito
mais, não fossem as mudanças e os cupins.
Vou ensinando a Bruna e, se ela tiver talento, quem sabe aos
nove anos não entramos juntas numa loja de instrumentos musicais...
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